Beijing – “Ele esperava que encontrássemos sua família e contássemos como ele viveu em Almaty, e que suas últimas obras um dia retornariam à sua terra natal”, disse Baldyrgan Baikadamova, filha do músico cazaque Bakhytzhan Baikadamov.
Sua voz carregava o peso de uma promessa de décadas: honrar o legado de um compositor chinês que sua família um dia acolheu como um dos seus.
Este ano marca o 120º aniversário do nascimento de Xian Xinghai, um célebre compositor chinês. Em 1941, com a eclosão da Grande Guerra Patriótica, Xian se viu isolado em Moscou. Com o conflito se intensificando e todos os caminhos para casa fechados, ele embarcou em uma jornada solitária para Almaty no ano seguinte, exilado, mas implacável, de uma terra natal que nunca mais veria.
Foi então que Baikadamov ofereceu não apenas abrigo, mas também dignidade e afinidade criativa, criando um vínculo que perduraria como prova dos laços culturais inquebráveis entre a China e a Ásia Central.
UMA FAMÍLIA ALÉM DAS FRONTEIRAS
Antes de chegar a Almaty, Xian Xinghai estava compondo para um documentário encomendado pelo Partido Comunista da China. A eclosão da guerra destruiu seus planos, o deixando isolado a milhares de quilômetros de casa. Sua missão criativa foi abruptamente suspensa.
Fraco e desamparado em uma cidade estrangeira, o destino interveio quando ele cruzou o caminho do compositor cazaque Bakhytzhan Baikadamov. Embora desconhecidos, Baikadamov abriu não apenas sua porta, mas seu mundo, oferecendo abrigo, solidariedade e o receptividade a um colega artista no exílio.
Embora nenhuma palavra tenha sido trocada entre eles, os dois compositores não precisaram de nenhuma, a música virou sua língua comum. Naqueles anos devastados pela guerra, melodias fluíam onde a fala falhava, cada nota um veículo para o indizível: tristeza, resiliência e o desafio silencioso da arte diante da ruína.
“Ao longo dos anos, através das histórias do meu pai e das memórias da nossa família, passei a sentir como se tivesse testemunhado pessoalmente aquele capítulo da história”, disse Baikadamova.
“A vida era difícil, mas os dias eram quentes”, lembrou ela. A comida era escassa, mal dava para sobreviver, mas a engenhosidade florescia em seu quintal. “Minha avó cultivava batatas e cenouras no quintal e trocava óleo e sal”.
Quando o inverno rigoroso de Almaty chegou e Xian não tinha casacos, o ancião pegou um casaco velho e, ponto por ponto, o remodelou para se ajustar ao seu corpo magro, disse ela.
Ao longo das décadas, os Baikadamovs guardaram os últimos desejos de Xian como um tesouro sagrado. Em 1986, após 40 anos de busca incansável, eles finalmente encontraram Xian Nina, a filha do compositor. “Desde então”, disse Baikadamova, “nossas famílias se tornaram uma, uma ponte viva entre o Cazaquistão e a China”.

Baldyrgan Baikadamova, filha do músico cazaque Bakhitzhan Baikadamov, mostra álbum comemorativo de Xian Xinghai em Almaty, Cazaquistão, no dia 21 de maio de 2021. (Foto por Kalizhan Ospanov/Xinhua)
DE VOLTA PARA CASA ATRAVÉS DA MÚSICA
Na casa dos Baikadamov, a música nunca foi apenas arte, era o pulsar da existência cotidiana. Melodias se espalhavam nos cômodos, se entrelaçavam nas conversas, persistindo nos espaços entre as palavras. Para Xian e Baikadamov, essas notas se tornaram seu vocabulário compartilhado, uma linguagem mais eloquente do que qualquer língua materna.
Embora a milhares de quilômetros da China, a alma de Xian permaneceu ligada à sua terra natal. Naquela modesta casa em Almaty, seu piano virou um grito de guerra e uma tábua de salvação, transformando a angústia do exílio em arte revolucionária. Entre 1942 e 1943, ele canalizou todo o seu anseio, fúria e patriotismo para as sinfonias monumentais “Libertação da Nação” e “Guerra Sagrada”, assim como para a suíte orquestral “Vermelho Sobre o Rio”.
Inspirado por Baikadamov, Xian mergulhou nas tradições musicais cazaques, incorporando habilmente o folclore local em suas composições. Sua sinfonia “Amangeldy”, dedicada ao herói nacional cazaque, virou uma homenagem cultural e um poderoso hino antifascista, conquistando forte admiração do público local.
Mas as contribuições de Xian se estenderam ainda mais. Ele criou obras vibrantes, repletas de caráter regional, ao mesmo tempo em que compartilhava generosamente sua expertise, ensinando teoria musical, orientando intérpretes e organizando concertos que despertaram enorme entusiasmo do público. Por meio desses esforços, as notas se tornaram laços e as melodias, amizades duradouras.
Baikadamova relembrou o maior desejo de Xian: um dia levar de volta à China essas composições de inspiração cazaque, cada nota transbordando gratidão pelas pessoas que o acolheram.
“Sei exatamente o que ‘obras finais’ significam para um compositor, é como deixar para trás seu último suspiro”, disse ela, com a voz abafada pela reverência. “Minha avó, meu pai, minha tia, todos se foram. Sou a única musicista que resta na família. Essa responsabilidade agora recai sobre mim e preciso cumpri-la”.
Em 11 de dezembro de 2023, 82 anos após Xian Xinghai encontrar refúgio em Almaty, a história completou um ciclo em sua cidade natal, Panyu, na província chinesa de Guangdong. O Xinghai Concert Hall, que leva o nome do compositor exilado, sediou um evento marcante: uma comemoração sinfônica do vínculo extraordinário entre Xian e Baikadamov.
Naquela noite, uma versão recém-adaptada de Amangeldy, adaptada pelo compositor cazaque Bakir Bayakhunov a pedido de Baikadamova, foi executada pela Orquestra Sinfônica de Guangzhou. Enquanto as conhecidas melodias cazaques se fundiam com a grandiosidade orquestral chinesa, Baikadamova permaneceu imóvel na plateia, com lágrimas brilhando sob as luzes da sala de concertos.
“Embora ele nunca tenha voltado para casa, a música de Xian voltou”, disse Baykadamova. Ela atravessou fronteiras e o tempo, carregando seu espírito inquebrável, sua visão artística e o extraordinário parentesco entre nossas nações, que começou em um humilde lar em Almaty.
REFORÇANDO A AMIZADE
Em uma carta de 1937 para sua mãe, Xian escreveu as palavras que se tornariam o refrão de sua vida: “Para sobreviver, devemos nos unir e defender a pátria, que é maior do que nossas próprias mães”. Essa convicção definiu sua vida e sua música.
Retornando de seus estudos em Paris em 1935, Xian se dedicou a compor canções patrióticas e música de resistência. Em 1938, ele lecionava na Academia de Artes Lu Xun, em Yan’an, onde compôs algumas de suas obras mais comoventes.
Em uma caverna restaurada em Yan’an, uma fotografia desbotada conta uma história silenciosa: Xian, envolto em um casaco de algodão, se curva sobre uma mesa de madeira rústica, com a caneta suspensa em meio a um pensamento. Os ventos invernais sacudiam a persiana de madeira da caverna, mas nada conseguia extinguir o fogo criativo que havia dentro dela. Durante seis dias e noites sem dormir, a caneta de Xian correu pelo papel manuscrito e, por fim, deu origem à Cantata do Rio Amarelo, uma obra-prima que irromperia por salas de concerto e campos de batalha, tornando-se a pulsação desafiadora de uma nação em guerra.
“Especialmente o oitavo movimento, O Rugido do Rio Amarelo, transmite uma determinação inabalável e um espírito indomável”, disse Biembet Demeuov, maestro titular da Capela Coral Estatal B. Baikadamov.
Ele disse que o mesmo espírito permeia Amangeldy, a obra sinfônica que Xian criou com Baikadamov. “Ambos os homens estavam respondendo à ameaça de invasão nacional. Seus corações ressoavam além das fronteiras”.
O ano de 2024 marca o 85º aniversário da estreia de A Cantata do Rio Amarelo. Em outubro, o Coro Estatal Baikadamov do Cazaquistão, sob a regência de Demeuov, apresentou a peça icônica em Wuhan, China. À medida que o refrão triunfante da cantata enchia o salão, despertava algo primordial na plateia, uma memória emocional compartilhada, um poderoso eco de resistência e esperança.
Essa é a força duradoura de A Cantata do Rio Amarelo e de Amangeldy, obras que transcendem o tempo e as fronteiras. É por isso que os lembramos hoje: por meio de sua música, honramos a história e levamos adiante uma amizade forjada nas horas mais sombrias, disse Yu Yafei, musicólogo do Conservatório de Música de Xinghai, em Guangzhou.
Em Almaty, a maior cidade do Cazaquistão, duas ruas paralelas sussurram um dueto silencioso, a Avenida Xian Xinghai e a Rua Baikadamov, com seus homônimos para sempre entrelaçados como pautas musicais em uma partitura. Lado a lado, as duas ruas são uma homenagem a dois músicos e ao vínculo duradouro entre suas nações.
Agora com quase 80 anos, Baikadamova deixa de lado a idade e a doença com a mesma determinação que sustenta sua missão há décadas. Em agosto, ela planeja retornar a Guangzhou para doar vários itens pessoais e documentos históricos de Xian Xinghai. Desta vez, ela levará sua neta.
“Quero que ela veja de onde Xian veio”, disse ela. “Este vínculo entre nossas famílias e nações, é algo que espero que seja transmitido por gerações”.