Por Wladmir Paulino
Júlio César Santos Lima conversava com os amigos num shopping center e afirmava que ali era um prato cheio para o racismo estrutural. Como todos os outros do grupo eram brancos, ele propôs uma experiência: todos entrariam numa das lojas consideradas mais caras do centro comercial, separados, como se não se conhecessem, para observar as reações.
“Ainda no corredor, quando me aproximava, os seguranças já estavam olhando para mim e deduzi o motivo. Mesmo assim entrei na loja e, onde eu ia, eles iam atrás. Os outros, brancos entraram sem que nada acontecesse. Eu me deslocava nas seções da loja de propósito para ver a reação deles”.
A cena descrita acima é uma das situações mais comuns para quem tem a pele na cor mais escura, seja no Recife, São Paulo ou Nova York. O episódio terminou com Júlio interpelando seus perseguidores. “Eles disseram que era impressão minha, que não estavam me seguindo. Quando saímos da loja, meus amigos admitiram e entenderam que era racismo. Apesar de ter questionado fiquei muito abatido, só queria sair dali porque as pessoas me olhavam não como alguém que estava sendo seguido injustamente, mas desconfiando que eu pudesse fazer alguma coisa errada. Tenho muito medo de estar em determinados espaços porque, mesmo tendo informação para me defender, o racismo é tão danoso que em alguns momentos você fica sem forças”.
Júlio César é estudante de ciências biológicas da Universidade Federal Rural de Pernambuco, onde ingressou através do sistema de cotas, e em 2023 ou 2024, a depender da pandemia, se tornará o primeiro membro da família a ter um diploma de curso superior. Filho, neto e irmão de negros, a intimidação no shopping foi apenas mais uma numa longa lista que inclui abordagens agressivas quando está andando na rua, descer do ônibus para averiguação, acusações de vitimismo e ‘brincadeiras’.
O jovem mora na Vila do Sesi, no Ibura de Baixo, Zona Sul do Recife, com os pais, um irmão e uma irmã, ambos mais novos. Sandro, o pai, de 48 anos, está desempregado. A mãe, Márcia, de 42, é auxiliar de serviços gerais. Robert Henrique, o irmão do meio, é bombeiro civil e tem 20 anos. A caçula é Maria Eduarda, estudante do ensino médio na rede estadual de ensino, de 16. Juntos formam a típica família negra num país racista: moradores de subúrbio, com limitações financeiras e a quem quase nunca a existência é reconhecida.
Uma das lembranças mais antigas do filho mais velho vem do início da adolescência. Ele e o irmão, por volta dos 13 e 12 anos, respectivamente, voltavam da casa da avó. “Fomos buscar goma para fazer tapioca”, lembra. Voltavam a pé, perto da BR-101, quando policiais numa viatura pararam para o tradicional interrogatório: ‘vêm de onde?’ ‘vão para onde?’ ‘por que estão aqui?’ etc, etc. “Mas isso de uma forma muito agressiva, gritando e com armas apontadas para nossas cabeças. Éramos duas crianças, não éramos bandidos. Fiquei com muito medo de morrer”.
A mãe de Júlio não generaliza, mas sabe muito bem que esse contato hostil é tanto comum como anterior ao seu filho. “Eu sempre digo: não saia sem um documento de identificação. Uma das coisas que mais tenho medo é que um filho meu apanhe de policiais. Não estou generalizando, sei que existem boas pessoas. Mas negro e filho de pobre não tem vida fácil, precisa saber lidar com muitas situações”, pontua.
Ele foi crescendo e as situações ganhando o contexto de acordo com a faixa etária. Se na infância e início de adolescência eram idas para a escola ou casa de parentes, o começo da vida adulta trouxe outros cenários, mas o enredo não muda. “Indo ou voltando de ônibus para a faculdade já perdi a conta de quantas vezes, quando o ônibus foi parado, eu ter que descer para ser revistado”.
Para o universitário esse é o momento em que o racismo fala mais alto porque, quando olha para os lados só vê gente da mesma cor tendo bolsa aberta e revirada na busca por algo que confirme a suspeita de que aquelas pessoas não podem estar apenas se deslocando de um lugar para o outro como todas as outras – não negras.
“No primeiro momento eu fico nervoso. Não porque estou com alguma coisa, mas é por suspeitarem de mim. Pode estar com qualquer roupa, pode estar pintado de ouro que, mesmo assim, vão desconfiar”.
“Desde a barriga”
A frase que dá título a esse texto foi uma resposta curta e simples da publicitária Débora Bastos quando questionada sobre o momento ideal para se conversar com uma criança sobre racismo. Co-fundadora do Criando Crianças Pretas, projeto em parceria com a jornalista Paula Batista, ela não hesita em fazer do tema algo a ser abordado dia a dia.
“O racismo é estrutural porque todos estamos pisando no mesmo chão, todos somos impactados por ele, alguns sendo beneficiados e outros tantos prejudicados. Racismo no Brasil é um aprendizado que começa muito cedo, por isso a importância de tratar disso com as crianças”, explica.
O Criando Crianças Pretas é um movimento criado por Débora e Paula que propõe diálogo e informação como ferramentas para combater o preconceito. A ideia evoluiu e virou um curso online, voltado para pais, tutores e educadores para que, dentro de cada contexto, seja familiar ou sócio-educacional, cada um crie um canal de troca de ideias sobre o tema com suas crianças. “A estrutura da nossa narrativa é entender como se fez a estrutura do racismo brasileiro, saber qual o papel das crianças brancas e negras nesse cenário, entender como o racismo atinge a todos e partir para praticas antirracistas.”
E dialogando foi a forma que a família de Júlio César Santos Lima encontrou para não se dobrar à discriminação. O pai dele, Sandro Lima, é babalorixá, o sacerdote do candomblé. Júlio e sua irmã mais nova, Maria Eduarda, são seguidores da mesma religião, enquanto a mãe deles é evangélica.
“Aqui em nossa casa houve muito diálogo e religião nunca foi problema. Nosso amor é maior do que qualquer coisa. Cada um tem sua fé e tem o respeito de todos”.
Há uma passagem na vida religiosa da família em que foi justamente a evangélica que fez a defesa do povo do terreiro. “Conversamos muito sobre nossas religiões, somos livres e respeitamos as escolhas do outro. Uma vez, uma vizinha nossa que ensinava numa escola bíblica dominical começou a dizer que o demônio morava em nossa casa. Pois foi minha mãe que foi até ela para dizer que não fizesse mais aquilo porque estava cometendo um crime. Existem outras situações de pessoas não passarem pela calçada da nossa casa, por exemplo, um negócio mais velado. Mas seguimos sem fraquejar justamente por apoiar uns aos outros”.
E como o crime foi citado, Débora também utiliza uma abordagem jurídica nas suas palestras e encontros. Ela diz que acredita que o acolhimento é uma via de transformação. Mas individualmente e no caso específico do preconceito de raça, é preciso algo mais. “É claro que eu acredito no amor como visão de transformação social, mas só um entendimento político de como o racismo é um sistema de opressão pode nos levar ao combate efetivo. Racismo se combate com justiça, com investimento, com muita informação, com educação”, pontua.
Informação essa que deve ser passada de pai e mãe para filhos, como mostra o exemplo dos Lima. “Minha vida sempre foi muito combativa. Minha mãe e minha avó me instruíram para que eu sempre mantivesse minha dignidade para enfrentar o racismo, principalmente o racismo institucional, pois é o Estado quem mais nos desprestigia”, conta Sandro.
Márcia, filha de mãe analfabeta e estudante apenas do Ensino Fundamental, vai na mesma linha do marido. Repete aos filhos desde sempre que ninguém vai dizer para onde eles devem ir. São eles que constroem a própria história. “Sempre disse a eles que iriam passar por algumas situações para alcançar espaços que, dizem, foram feitos para brancos. Façam a diferença que existe um lugar importante para você sentar”.